A qualquer momento, o ex-governador Silval Barbosa, 57 anos, terá o direito à progressão de regime, saindo da prisão domiciliar para o semiaberto que, em Mato Grosso, é praticamente sinônimo de “liberdade”. O Estado não dispõe de unidade prisional para que o condenado fique livre durante o dia e permaneça na prisão à noite, conforme prevê a Lei de Execuções Penais.
A pena imposta ao primeiro governador preso de Mato Grosso divide opiniões e levanta questionamentos: com todos os benefícios que envolveram o acordo de colaboração dá para dizer que o crime compensou para Silval? Do ponto de vista dos números, há resultados que reforçam as dúvidas.
Levantamento do jornal A Gazeta, baseado em dados da Receita Federal e da Controladoria Geral do Estado (CGE), mostram que o ex-governador Silval Barbosa devolverá cerca de 7% do total do rombo aos cofres públicos, atribuído à organização criminosa liderada por ele.
Em 2017, a CGE analisou a gestão Barbosa e concluiu que o desvio chegava a R$ 1,03 bilhão. No ano seguinte, nova análise feita pela Receita Federal sobre a Operação Ararath indicava um desvio maior, que passa de R$ 1,4 bi. O acordo de delação firmado com o Ministério Público Federal (MPF) obriga o ex-governador a devolver exatos R$ 70.087.796,20. Na prática, o acordo também revelou o tamanho do patrimônio “camuflado” de Silval, já que nas últimas eleições de 2010, a última que concorreu, ele declarou possuir só R$ 2 milhões em bens.
O MPF estipulou que os R$ 70 milhões seriam devolvidos de duas formas: com a entrega de imóveis, avaliados em R$ 46,6 milhões, e com o pagamento em espécie de R$ 23,4 milhões, que devem ser quitados em 5 parcelas anuais de R$ 4,6 milhões, até o ano de 2022.
O primeiro pagamento foi programado para o dia 1º de março de 2018, o segundo venceu na última segunda-feira (1). Em caso de atraso de até 60 dias, Silval tem que pagar multa de 10% sobre o valor da parcela. Se o atraso for maior que isso, o acordo poderá ser rescindido.
Jornal A Gazeta
Nem a defesa de Silval Barbosa nem o MPF informam se as parcelas foram quitadas devidamente até o momento. Deixando de lado o preceito da transparência, a 5ª Vara da Justiça Federal em Cuiabá, responsável por receber os valores, alega sigilo. Ao serem questionadas pela reportagem, as assessorias do MPF e da Justiça Federal afirmaram que a delação, que veio a público em agosto de 2017, é sigilosa e que não poderiam dar qualquer informação a respeito.
Professor questiona cálculo do MPF
Para o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Gustavo Badaró, o acordo de delação premiada pressupõe que haja um cálculo do quanto foi o lucro ilegal do réu. No caso de Silval Barbosa, a lógica não é seguida. Os termos da delação não esclarecem se o MPF calculou o valor a ser ressarcido em cima do que foi desviado ou se houve outro método.
“Se fosse uma sentença judicial isso teria que ser calculado na ponta do lápis. Como é um acordo de colaboração premiada vai o que as partes negociam, mas o que se deveria fazer é indagar aos representantes do Ministério Federal o que eles levaram em conta para estabelecer o total do dano”, questiona Badaró.
Além de pagar um valor supostamente bem menor do que foi desviado pelo grupo criminoso, Silval ganhou o benefício de um regime de progressão de pena “especial”, previsto na lei das delações. Atualmente, o delator cumpre prisão em regime domiciliar “diferenciado” de 3 anos e 6 meses. Em seguida cumprirá prisão em regime semiaberto por 2 anos e 6 meses e, por fim, em regime aberto por cerca de 14 anos e 2 meses.
O ex-governador só ficou efetivamente trancafiado em um presídio, o Centro de Custódia de Cuiabá (CCC), durante 21 meses de prisão preventiva. Na verdade, Silval acumula dois benefícios. Primeiro, por ser delator, consegue progredir de regime mais rápido, com a redução de dois terços da pena. Segundo, por ser rico e contratar bons advogados, não sofre com eventuais falhas sistêmicas do judiciário.
Defensor vê dois pesos e duas medidas
A realidade de Silval é bem diferente daquilo que vive centenas de mato-grossenses quando se trata de progressão de regime. Para eles, a espada da Justiça é mais firme. O defensor público José Carlos Evangelista, que atua na Vara de Execuções Penais de Cuiabá, calcula que mais de 90% dos reeducandos esperam além do previsto para conseguir a progressão para o regime domiciliar ou para o semiaberto.
“Eu costumo dizer que ao cliente famoso e midiático você estende um tapete vermelho para entrar no Fórum. Agora a um cliente da Defensoria você coloca algemas nos pés e nas mãos para realmente constrange-lo duplamente”.
Evangelista relembra um detalhe simbólico ocorrido há duas semanas, quando viu réus defendidos por ele – homens de origem humilde – serem algemados nos pés e nas mãos, enquanto agentes públicos envolvidos na Operação Sangria eram conduzidos para prestar depoimento apenas com as algemas nas mãos.
Curioso é que, mesmo preso, Silval trouxe prejuízo ao erário. Números do Supremo Tribunal Federal (STF) apontam que a administração pública gasta R$ 2,4 mil por mês com cada detento. Em Mato Grosso, a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) destina de R$ 1 mil a R$ 5 mil por mês aos reeducandos.
O professor de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Giovane Santin, argumenta que o sentimento de impunidade não pode vir acompanhado da retirada de direitos. O que a população deve pedir, segundo ele, é que todos tenham acesso aos mesmos direitos que Silval teve.
“Que se estenda o direito daqueles que não possuem recursos, mas não se abrande o direito daqueles que não possuem. O certo não é restringir o direito das classes sociais mais abastadas e sim ampliar os direitos daqueles que não possuem”, afirma Santin.
‘Tinha que sentir na pele o que fez’
Difícil é convencer o povo, que convive diariamente – e de maneira trágica – com as rastros da corrupção. Para muitos, o valor de R$ 70 milhões a ser ressarcido não cobre o dano indireto causado na vida da população. A camareira Lúcia Helena dos Santos, 45 anos, lembra que a mãe, de 68 anos, morreu no Pronto-Socorro de Cuiabá, por falta de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o que ela considera efeito indireto da corrupção.
“Ele tem que ficar preso. Tinha que ser condenado e cumprir os 20 anos de pena na cadeia mesmo”, reclama. “Até hoje a gente vive acuado pela corrupção, minha mãe morreu e não podemos fazer nada. Não podemos acusar porque não temos como provar, mas é resultado sim do que foi feito. Se este dinheiro tivesse sido usado na saúde, talvez minha mãe ainda estivesse viva”.
Auxiliar administrativo Igor Bruno, 24 anos, acha que Silval deveria “sentir na pele” o que causou à sociedade. O que, segundo Igor, não ocorreu com a punição atual. Os benefícios concedidos pelo acordo, na avaliação dele, permitiram ao ex-governador uma vida tranquila e muito sossegada.
“A gente sente todos os dias o que foi causado na nossa cidade e no nosso Estado e ele (Silval) deveria sentir na pele também. Se ele tivesse investido tudo que ele roubou, fazendo coisas boas para o povo, eu tenho certeza que o resultado seria bem maior e melhor”, completa.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com o advogado Délio Lins, da defesa de Silval Barbosa, mas ele não atendeu ligações e não respondeu mensagens.